segunda-feira, 12 de julho de 2010

E para quê Heidegger nestes tempos de penúria?

Em 1946 Heidegger proferiu uma conferência ( E para quê poetas? [Wozu Dichter?] )por ocasião do vigésimo aniversário da morte de Rainer Maria Rilke, nesta conferência usa uma frase do poema "Pão e vinho" de Hölderlin e pergunta:
"...e para quê poetas em tempos de penúria?".
Inspirados neste proceder de Heidegger podemos também fazer algo similar e perguntar :
...e para quê filósofos nestes tempos de penúria?

Na sua conferência Heidegger diz:
"Esa época de la noche del mundo es el tiempo de penuria, porque, efectivamente, cada vez se torna más indigente. De hecho es tan pobre que ya no es capaz de sentir la falta de dios como una falta." (Heidegger, ¿Y para qué poetas?)

Da mesma maneira que podemos cantar uma música com várias letras diferentes, podemos usar os dizeres de Heidegger para falar coisas diferentes, podemos então dizer que, na noite do mundo, as trevas estendem-se sobre a filosofia. Nestes tempos, nos dias de hoje temos filosofia da física, filosofia da matemática, filosofia disso e daquilo e poucos recordam-se da Filosofia da Filosofia. E pior, muitos não conseguem compreender a falta da filosofia como sendo uma falta. A ausência da filosofia não é sequer notada.
Radicalismo, loucura, desvario, fazer afirmações deste calibre? Nos tempos de hoje, da modernidade, da elevada e endeusada técnica, do mundo de consumo em massa, da aldeia global, dizer que a filosofia vive uma tenebrosa noite? Respondendo a esta questão podemos dizer que se assumirmos que filosofia não é cultura, que filosofia é situar-se no começo, então as afirmações já podem soar plausíveis.

Em seu livro Ser e Tempo Heidegger faz uma crítica à racionalidade, e expõe como a atitude cognitiva encobre o mundo. Ser e Tempo é uma tentativa de entrar, avançar na imaginação transcendental desde o ponto onde Kant se deteve e não ousou ir adiante.
Ser e Tempo é um passo em direção ao desconhecido, ao abismo, à ausência total de fundamentos.
Para realizar esta empresa Heiddeger tem uma tarefa árdua. Para isso é necessário voltar ao início e buscar a compreensão do ser:

"La comprensión del ser constituye el problema fundamental de la metafísica en general. ¿Qué dice “ser”? (Was besagt Sein?) es, sin más, la pregunta fundamental de la filosofía." (Heidegger, El problema de la trascendencia y el problema de Ser y Tiempo)

E por que é difícil esta tarefa? Pois bem, imagine agora uma situação na qual uma pessoa chega a um país estranho e tenta compreender um jogo desconhecido, não sabe as regras deste jogo e tudo isso agravado pelo fato de também não saber o idioma local. É provavel que esta pessoa pense em fazer relações de algum jogo e regras de seu conhecimento e transpor ao jogo...desconhecido.

No aprendizado de idiomas temos a questão de palavras parecidas que denominam-se falsos cognatos ou falsos amigos,palavras semelhantes em duas línguas, mas de sentidos totalmente diversos. Se pretendermos buscar alguma relação ou semelhança de sentido ao relacionarmos a frase "una mujer embarazada" no idioma espanhol e a frase "uma mulher embaraçada" cairemos em grandes equívocos. Pois em espanhol a mulher estaria grávida e em português estaria confusa.
Semelhantes mal entendidos podem acontecer quando afoitamente tenta-se transpor conceitos oriundos de determinados filósofos para outros que embora possam ter algo de semelhantes, usam para suas teses fundamentos totalmentes diferentes.
Como não vamos tratar aqui de idiomas, ao invés dos falso cognatos podemos falar de falsa doxa, opiniões aparentemente semelhantes, mas com fundamentos totalmentes diferentes. A árdua tarefa consiste no fato de que embora em algumas correntes filósoficas fale-se de maneira diferente de uma mesma coisa, em Ser e Tempo Heidegger fala de maneira diferente de coisas desconhecidas. E precisamente por isso, é perigoso usar fundamentos de outros filósofos para tentar compreender Ser e Tempo.

Para os gregos pragmata era tratado como "coisas" Heidegger entende pragmata como "utensílios" e é aí nesta maneira diferente de falar que surge o desconhecido. (neste caso, "utensílio - instrumento)
E sendo a filosofia um situar-se no ínicio, em Ser e Tempo lidamos com vários conceitos que ao longo da história foram deixados de lado ou simplesmente atropelados, ou seja, passou-se por cima de fundamentos primordiais. Uma das coisas mais difíceis é saber o que realmente sabemos e o que desconhecemos. Devemos nos precaver e não aceitar como conhecidas coisas que na verdade, são completamente desconhecidas e não passam de meras conjecturas ou teorias sobre aquilo que é o investigado.
No passado as bases da filosofia foram firmadas sobre conceitos como matéria, movimento, tempo, espaço e diversas outros coisas desconhecidas definidas através de outras, também desconhecidas. E com isso temos definições semelhantes a esta:

"A matéria é aquilo onde tem lugar as mudanças chamadas movimento. E o movimento são aquelas mudanças que tem lugar na matéria."

É claro, palmário e manifesto que não se pode aceitar a coisa buscada como a coisa conhecida. Não se pode também definir uma incógnita através de outra incógnita.
Uma definição do tipo X=Y (A matéria é aquilo onde tem lugar as mudanças chamadas movimento.) significaria que Y é o conhecido, mas quando se vai buscar o início, o fundamento, encontramos que Y=X ( movimento são aquelas mudanças que tem lugar na matéria ) e temos assim a identidade de duas incógnitas. X=Y e Y=X.

Em Ser e Tempo lidamos (por exemplo) com conceitos como tempo e espaço e verificamos que é necessário regredir ainda mais para buscar o conhecido, é preciso procurar o que vem antes do tempo e do espaço.

Na filosofia ocidental , principalmente depois de Galileu e Newton, é amplamente aceito as definições dadas por estes ao que seria tempo e espaço e sobre estas bases é erigida várias correntes filósoficas e científicas. Na busca pela compreensão do ser, Heidegger procura , entre outras tarefas, definir de maneira primordial o que seria tempo e espaço. É bem verdade que, de fato, mesmo antes de Heidegger não havia um consenso sobre isto. E sinais de mudanças significativas neste cenário começaram a surgir já com Kant e na sua dissertação de 1747 (Pensamentos sobre a verdadeira estimação das forças vivas) onde conclui o doutorado, influenciado pelo sistema leibniziano admite que os objetos são anteriores ao espaço, posteriormente, tendendo às idéias de Newton inverte sua posição e defende que o espaço é anterior a todos as coisas, e finalmente deixa estas teses concebendo que tempo e espaço são formas a priori da sensibilidade.
Kant buscar investigar judiciosamente os princípios e regras que permitam alicerçar o conhecimento em uma base sólida e segura. Sistematiza uma teoria do conhecimento. Indaga sobre o que é, e quais são as condições de possibilidade do conhecimento.

Kant diz que "Todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos" há que se frisar o termo começa ou seja o conhecimento não é apenas e somente conseqüência dos sentidos, a sentença completa seria: "Todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos, daí passa ao entendimento e termina na razão, acima da qual nada se encontra em nós mais elevado que elabore a matéria da intuição e a traga à mais alta unidade do pensamento." (Kant, 2001, A299) O conhecimento começa pela experiência, mas recebe ainda para compor sua formação, a modelagem impressa pelas faculdades internas do homem.
Aqui há mais que uma mera síntese entre idéias empiristas e racionalistas, há um evidente avanço em relação a estes sistemas.

Se todo o conhecimento começa pelos sentidos pode se perguntar, o que há antes da experiência? Há o "a priori" o que é anterior a experiência, dizendo de outra forma, antes da experiência há o sujeito que por meio de seus elementos a priori (sensibilidade , entendimento) consegue conhecer as coisas, que se apresentam.
É preciso salientar que esta forma do sujeito conhecer o mundo não é uma forma subjetiva no sentido individual, mas sim que é a única forma pela qual a espécie humana pode perceber o mundo, melhor dizer algo como "subjetivismo transcendental". Diz Kant:

É-nos completamente desconhecida a natureza dos objetos em si mesmos e independentemente de toda esta receptividade da nossa sensibilidade. Conhecemos somente o nosso modo de os perceber, modo que nos é peculiar, mas pode muito bem não ser necessariamente o de todos os seres, embora seja o de todos os homens. (Kant, 2001, A 42)

A idéia de Newton, a qual ainda hoje prevalece em várias partes é (dizendo de modo bem simplista) que o espaço é um grande recipiente que existe independente do universo, Deus criou o espaço e também o tempo e depois jogou dentro deste recipiente cósmico, as estrelas, galáxias,o universo inteiro. Newton admite afora este tempo verdadeiro, absoluto e matemático, uma espécie de tempo relativo usado para coisas como marcar hora, dias meses etc.

Leibniz define o espaço e tempo assim "Longe de ser uma substância, o espaço não é sequer um ser. É uma ordem, como o tempo, uma ordem de coexistências, como o tempo é uma ordem entre as existências que não estão reunidas” (Leibniz, 2009, p.79). A rigor, tempo e espaço e mesmo matéria para Leibniz não existem. Leibniz aceita relações, por exemplo, que o espaço seria o conjunto de relações entre os objetos no mundo possível. Em uma sala de aula pode existir alunos e professores e vários tipos de relações entre estas pessoas, a idéia de Leibniz é que para ser possível haver tais relações é primeiro necessário que haja alunos e professores, não existe um conjunto de relações professor-aluno que exista por si, parada em um ponto qualquer do mundo à espera de um conjunto aluno-mestre. Todavia estas relações são efetivas e reais, o que é irreal é que exista este espaço relacional à espera de ser ocupado por pessoas. Não há um espaço absoluto, prévio, onde Deus depois depositou todos os entes do universo.

Para Kant tempo e espaço tem significados diferentes destes dados por Newton e Leibniz. Criticando tanto newtonianos quanto leibnizianos declara:

“Os que afirmam a realidade absoluta do espaço e do tempo, quer os considerem substâncias ou acidentes, têm que se colocar em contradição com os próprios princípios da experiência. Se optam pelo primeiro partido I (que geralmente tomam os físicos matemáticos) têm de aceitar dois não-seres eternos e infinitos, existindo por si mesmo (o espaço e o tempo), que existem (sem serem contudo algo de real), somente para abranger em si tudo o que é real. Se tomam o segundo partido (a que pertencem alguns físicos metafísicos) e consideram o espaço e o tempo como relações dos fenômenos (relações de justaposição e sucessão) abstraídas da experiência (embora I confusamente representadas nessa abstração) têm de contestar a validade das teorias matemáticas a priori, relativamente às coisas reais (por exemplo, no espaço), ou, pelo menos, a sua certeza apodítica, pois uma tal certeza apenas se verifica a posteriori; os conceitos a priori de espaço e de tempo, segundo esta opinião, seriam apenas produto da imaginação e a sua fonte deveria realmente procurar-se na experiência. A imaginação formou das relações abstratas desta experiência algo que, na verdade, encerra o que nela há em geral, mas que não seria possível, sem as restrições que a natureza lhe impõe”(Kant, 2001, A 40).

Neste ponto fica claro que por mais que Kant tenha estudado as concepções de espaço e tempo de Newton e Leibniz as suas próprias conclusões não são meras sínteses destas idéias, mas um avanço significativo como se pode notar aqui:

"Também na parte analítica da Crítica se demonstrará que o espaço e o tempo são apenas formas da intuição sensível, isto é, somente condições da existência das coisas como fenômenos"... (Kant, 2001, B XXV)

Tempo e espaço são intuições puras, intuições, porque tendo em vista que há apenas um espaço e um tempo não podem ser conceitos, porque o conceito se refere sempre a uma multiplicidade. Intuições puras porque não possuem conteúdo empírico, conteúdo da sensação.

Acerca do espaço diz:

O espaço é uma representação necessária, a priori, que fundamenta todas as intuições externas. Não se pode nunca ter uma representação de que não haja espaço, embora se possa perfeitamente pensar que não haja objetos alguns no espaço. Consideramos, por conseguinte, o espaço a condição de possibilidade dos fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma representação a priori, que fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos (Kant, 2001, B39).

O espaço não é um conceito empírico, extraído de experiências externas. Efetivamente, para que determinadas sensações sejam relacionadas com algo exterior a mim (isto é, com algo situado num outro lugar do espaço, diferente daquele em que me encontro) e igualmente para que as possa representar como exteriores [e a par] umas das outras, por conseguinte não só distintas, mas em distintos lugares, requere-se já o fundamento da noção de espaço. Logo, a representação de espaço não pode ser extraída pela experiência das relações dos fenômenos externos; pelo contrário, esta experiência externa só é possível, antes de mais, mediante essa representação (Kant, 2001, A 23).

E ao longo da primeira seção da crítica Kant prossegue enumerando e definindo pormenorizadamente o espaço e na segunda seção trata então do tempo e diz:

O tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio tempo em relação aos fenômenos em geral, embora se possam perfeitamente abstrair os fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é possível toda a realidade dos fenômenos. De todos estes se pode prescindir, mas o tempo (enquanto a condição geral da sua possibilidade) não pode ser suprimido (Kant, 2001, A 31).


O tempo não é algo que exista em si ou que seja inerente às coisas como uma determinação objetiva e que, por conseguinte, subsista, quando se abstrai de todas as condições subjetivas da intuição das coisas (Kant, 2001, B 49).

"O tempo não é mais do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e do nosso estado interior (Kant, 2001, A 33).

"O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral. O espaço, enquanto forma pura de toda a intuição externa, limita-se, como condição a priori, simplesmente aos fenômenos externos. Pelo contrário, como todas as representações, quer tenham ou não por objeto coisas exteriores, pertencem, em si mesmas, enquanto determinações do espírito, ao estado interno, que, por sua vez, se subsume na condição formal da
intuição interna e, por conseguinte, no tempo, o tempo constitui a condição a priori de todos os fenômenos em geral; é, sem dúvida, a condição imediata dos fenômenos internos (da nossa alma) e, por isso mesmo também, mediatamente, dos fenômenos externos. I Se posso dizer a priori: todos os fenômenos exteriores são determinados a priori no espaço e segundo as relações do espaço, posso igualmente dizer com inteira generalidade, a partir do princípio do sentido interno, que todos os fenômenos em geral, isto é, todos os objetos dos sentidos, estão no tempo e necessariamente sujeitos às relações do tempo (Kant, 2001, A 34).

Sendo o espaço e o tempo intuições pura temos aí a explicação para que a maioria do juízos da matemática sejam sintéticos a priori. A geometria se relaciona com o espaço, a aritmética com o tempo, a sucessão numérica tem sua base na sucessão temporal. Por ser o espaço e tempo intuições, os juízos da matemática são sintéticos, e são a priori devido que as intuições são puras.

O tempo e o espaço são portanto duas fontes de conhecimento das quais se podem extrair a priori diversos conhecimentos sintéticos, do que nos dá brilhante exemplo, sobretudo, a matemática pura, no que se refere ao conhecimento do espaço e das suas relações. Tomados conjuntamente são formas puras de toda a intuição sensível, possibilitando assim proposições sintéticas a priori (Kant, 2001, A 39).

Prosseguindo Kant assinala limitações nestas fontes do conhecimento:

Mas estas fontes de conhecimento a priori determinam os seus limites precisamente por isso (por serem simples condições da sensibilidade); é que eles dirigem-se somente aos objetos enquanto são considerados como fenômenos, mas não representam coisas em si. Só os fenômenos constituem o campo da sua validade; saindo desse campo já não se pode fazer uso objetivo dessas fontes. Esta realidade do espaço e do tempo deixa, de resto, intacta a certeza do conhecimento por experiência; este é para nós igualmente seguro, quer essas formas sejam necessariamente inerentes às coisas em si mesmas, quer apenas à nossa intuição das coisas (Kant, 2001, B 56).

Então até aqui Kant estabeleceu como e porque a ciência, notadamente a geometria euclidiana e mecânica newtoniana, avançava (formulação de juízos sintéticos a priori) e a metafísica estava estagnada, demonstrou a possibilidade do conhecimento e respondeu a questão do que é possível saber. Até onde chega a razão humana e em quais os domínios que ela tem autoridade para emitir juízos universais e necessários.

Espaço e tempo não são coisas reais, não possuem existência independente do sujeito (raça humana), não surgem em decorrência da experiência, a experiência só é possível justamente porque já existe anteriormente na estrutura da cognição humana a intuição de tempo e espaço. E são estas capacidades que são capazes de ordenar e regrar a massa bruta de dados fornecidos pela sensibilidade. Sem a intuição de tempo os dados apareceriam ao entendimento sem a noção de "antes, agora e depois" nem mesmo pode-se dizer que chegariam ao entendimento de maneira simultânea porque simultaneidade é um conceito que envolve a noção de tempo. Sem a intuição de espaço os objetos seriam dados sem relação a nenhum referencial "longe, distante, etc." igualmente não poderiam ser apresentados todos "juntos", no "mesmo lugar" pois aí já esta implícita a noção de espaço. Sem tempo e espaço, nenhum objeto seria dado e por conseqüência o entendimento não poderia pensar nenhum objeto e nem haver conhecimento. Entretanto com a intervenção das intuições puras de tempo e espaço há a classificação e ordenação das informações fornecidas pela sensibilidade que assim formam um conjunto de dados sobre o qual há nesse momento só a possibilidade de conhecer, estes dados agora tornam-se passíveis de serem processadas e organizadas pelo entendimento (categorias: quantidade, qualidade , relação, modalidade) somente após este processo pode-se dizer que aparece o conhecimento.

Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado (Kant, 2001, B 75 A 51).


O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento (Kant, 2001, B 75 A 51).

Se não ocorre este processo, o sujeito não seria capaz de adquirir conhecimento, somente após estas características da subjetividade do sujeito serem "acrescidas",incorporadas ao objeto captado pela sensibilidade, é que se faz perceptível o fenômeno, só então há o que conhecer.
Desta forma, esse "acréscimo" (obra da sensibilidade e entendimento) que o sujeito adiciona aos objetos permite dizer que o homem não "descobre" leis e ordenamentos na natureza, mas sim, que ele próprio forja e cria estas leis, muito embora se digam delas que possam ser universais e necessárias. Não conhecemos a coisa em si, mas o que podemos conhecer, o mundo dos fenômenos, podemos conhecer de maneira verdadeira. (tem validade para toda a humanidade)

Por mais interessante que sejam as teorias de Kant , permanecem incógnitas, uma delas, como se dá a relação entre sujeito e objeto? Como é possível um objeto "fora" no mundo ser referenciado "dentro" do mundo do sujeito?












Em Ser e Tempo, Heidegger ao tratar dos temas espaço e tempo já adverte quanto aos riscos do emaranhado em que se encontra tais conceitos e na sua conferência Tempo e Ser [Zeit und Sein], pronunciada na universidade de Friburgo, em 31 de janeiro de 1962, assinala de maneira clara:

"Todo intento de pensar suficientemente la interna relación de ser y tiempo con ayuda de las usuales e imprecisas representaciones de tiempo y ser queda enredado al punto en una inextricable madeja de referencias que apenas han sido aún pensadas a fondo." (Heidegger, Tiempo y Ser)

Declara ainda a respeito do ser e do tempo:

"El ser no es ninguna cosa real y concreta, y por tanto nada temporal, mas es, empero, determinado como presencia por el tiempo.
El tiempo no es ninguna cosa real y concreta, y por tanto nada ente, pero permanece constante en su pasar, sin ser él mismo algo temporal como lo ente en el tiempo.

Ser y tiempo se determinan recíprocamente, pero de una manera tal que ni aquél -el ser- se deja apelar como algo temporal ni éste -el tiempo- se deja apelar como ente. Al cavilar sobre todo esto, nos sorprendemos vagando erráticamente entre enunciados contradictorios.”
(Heidegger, Tiempo y Ser)


Mais adiante Heidegger afirma enfático: "El tiempo auténtico es tetradimensional." e continua:

“El tiempo no es. Se da el tiempo. El dar, que da tiempo, se determina desde la recusante-retinente cercanía. Procura lo abierto del espacio-tiempo y preserva lo que permanece recusado en el pasado, retenido en el futuro. Denominamos al dar que se da el tiempo auténtico, la regalía esclarecedora-ocultadora. En la medida en que la regalía misma es un dar, se oculta en el tiempo auténtico el dar de un dar.
Pero ¿dónde se da el tiempo y el espacio-tiempo? Por acuciante que pueda parecer a primera vista esta pregunta, no nos está ya permitido preguntar de semejante manera por un dónde, por el lugar del tiempo. Porque el tiempo auténtico mismo, la región de su triple regalía determinada por la cercanía acercante, es la localidad preespacial, sólo merced a la cual se da un posible donde." (Heidegger, Tiempo y Ser)

A respeito do espaço, em outras oportunidades, como em um artigo de 1969, A arte e o espaço [Die Kunst und der Raum] Heidegger faz incursões na direção do que seria uma resposta adequada ao tema e começa colocando a questão:

"El espacio del proyecto físico-técnico -cual sea su determinación -¿puede tener la validez de único y verdadero espacio?(…)La interrogante sobre lo que el espacio como espacio sea, no queda formulada, tampoco su respuesta.(…)Incierto también el ser del espacio y el poder atribuírsele un modo de ser." (Heidegger, El arte y el espacio)

Em outro artigo ( ...E para que poetas? ) Heidegger se aproveita de uma carta escrita em 11 de agosto de 1924 por R.M. Rilke destinada a Muzot e destaca sobre o espaço:

"Por muy extendido que esté lo ‘externo’ apenas soporta con todas sus distancias siderales una comparación con las dimensiones, con la dimensión profunda de nuestro interior, que ni siquiera precisa la generosa espaciosidad del universo para ser casi interminable en sí.” (Heidegger, ¿Y para qué poetas?)

Com estes exemplos da maneira como Heidegger trabalha, podemos ver como ele vai sedimentando aos poucos uma base nova sobre a qual vai fundamentar sua ontologia. E para isso usa diversos conceitos com os quais é necessário ter muito cuidado ao considerá-los entendidos e compreendidos. Pois caso haja uma preciptação ou descuido ao lidar com tais conceitos isto pode vir a solapar o entendimento posterior de todo o conjunto da obra.

Para ler de maneira adequada Ser e Tempo é preciso avançar e recuar ao mesmo tempo, com fluidez e humildade. Para exemplificar isso, temos como um dos vários conceitos iniciais propostos em SZ a introdução do termo "Dasein", de certa maneira, pode-se considerar que a explicação dada inicialmente é suficiente e clara o bastante e não requer maiores cuidados ou não há maior necessidade de aprofundar na compreensão do significado completo do termo. Entretanto há mais possibilidades de aprofundamento na compreensão do que seria este “Dasein” como se pode notar no texto correspondente ao § 10 do curso Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz (“Princípios metafísicos da lógica a partir de Leibniz”), ditado por Heidegger no semestre de verão de 1928, na Universidade de Marburgo.O texto é uma enumeração de vários lemas a respeito do dasein, eis alguns:

"1. Para el ente que es tema de la analítica no se escogió el título “hombre”, sino el título neutral “lo Dasein”. Con él se designa al ente al cual su propio modo de ser no le es indiferente (ungleichgültig) en un sentido determinado.

2. La peculiar neutralidad del título “lo Dasein” es esencial, porque la interpretación de este ente se ha de llevar a cabo antes de toda concreción fáctica. Esta neutralidad significa también que el Dasein no es ninguno de ambos sexos. Pero esta asexualidad no es la indiferencia de la vacía nulidad, la débil negatividad de una nada óntica indiferente. El Dasein en su neutralidad no es un indiferente nadie y quienquiera, sino la originaria positividad y poderosidad de la esencia.

3. La neutralidad no es la nulidad de una abstracción, sino precisamente la poderosidad del origen, que lleva en sí la interna posibilidad de cada concreta humanidad fáctica.

4. Este Dasein neutral no es nunca el existente; existe el Dasein cada vez sólo en su concreción fáctica. Pero el Dasein neutral es ciertamente la fuente originaria de la interna posibilidad que mana en cada existir y que posibilita internamente la existencia. La analítica habla, en el Dasein, siempre solamente del Dasein de los existentes, pero no [habla] al Dasein de las existencias; lo último sería absurdo, pues sólo se puede hablar al existente. La analítica del Dasein está, pues, antes de toda profecía y de toda anunciación cosmovisiva; tampoco es sabiduría, ésta sólo se encuentra alojada en la estructura de la metafísica. En contra de esta analítica como un “sistema del Dasein” está el prejuicio de la filosofía de la vida. Surge del miedo al concepto, da testimonio de la incomprensión del concepto y de la “sistemática” como arquitectónica del pensamiento que, no obstante, es histórica.

5. Este Dasein neutral no es, por eso, tampoco el singularius (Einzelne) egoísta, no es el individuo óntico aislado. No es la egoidad del singularius lo que se desplaza al centro de la problemática. Pero la consistencia esencial del Dasein, de pertenecerse a sí mismo en su existencia, es lo que ha de asumirse también en el punto de partida. El punto de partida en la neutralidad significa, por cierto, un peculiar aislamiento (Isolierung) del hombre, pero no en el sentido fáctico existentivo, como si el que filosofa fuese el centro del mundo, sino que es el aislamiento metafísico del hombre."

E Heidegger prossegue enumerando mais lemas e destrinchando os seus significados. O caminhar de Heidegger vai em direção ao essencial. Por isso que, por exemplo, para investigar a essência do mundo circundante, ou do mundo adjacente, é preciso investigar a essência do utensílio, pois o que existem são utensílios e não "coisas". Uma coisa "é", mas um utensílio nunca "é". O utensílio "é" o seu uso, o instrumento só pode ser no seu modo. O utensílio é sempre algo para...(para alguma coisa, para alguma finalidade). Com o mundo dos utensílios surge o mundo dos Objetos. Antes da separação entre sujeito e objeto há o mundo.

Para entender Ser e Tempo é preciso quase que elaborar uma nova gramatica mental ou para não usar os termos "mente, pensar" pode-se dizer a mesma coisa de outra forma: Para entender Ser e Tempo é preciso aprender a ver de maneira diferente da usual, lidar de maneira diferente com o mundo. É preciso "aprender" a "re-conhecer" o mundo. E por incrível que pareça descobrir, desvelar um mundo.
E para responder à questão sobre ser e tempo vamos recorrer uma vez mais às conferências de Heidegger, no caso à conferência ministrada na Sociedade Teológica de Marburgo em jullho de 1924: O Conceito de Tempo [Der Begriff der Zeit] nesta conferência começa por perguntar:
"¿Qué es el tiempo?" e no seu final diz:
"No miremos la respuesta, sino repitamos la pregunta. ¿Qué sucedió con la pregunta? Se ha transformado. La cuestión de ¿qué es el tiempo?, se ha convertido en la pregunta: ¿Quién es el tiempo? Más en concreto: ¿Somos nosotros mismos el tiempo? Y con mayor precisión todavía: ¿Soy yo mi tiempo? Esta formulación es la que más se acerca a él. Y si comprendo debidamente la pregunta, con ello todo adquiere un todo de seriedad. Por tanto, ese tipo de pregunta es la forma adecuada de acceso al tiempo y de comportamiento con él, con el tiempo como el que es en cada caso el mío. Desde un enfoque así planteado, el ser-ahí sería el blanco del preguntar." (Heidegger, El concepto de tiempo)

Na conclusão da conferência de 1946 ...E para quê poetas? Heidegger conclui dizendo:

"Hölderlin es el precursor de los poetas en tiempos de penuria. Por eso, ningún poeta de esta época puede superarlo. Sin embargo, el precursor no se marcha hacia un futuro, sino que vuelve de él, de tal modo, que sólo en el advenimiento de su palabra se hace presente el futuro. Cuanto más puro es ese advenimiento, tanto más presente será su permanencia. Cuanto más escondidamente se reserva lo que viene en la predicción, tanto más puro es el advenimiento. Por eso, sería erróneo pensar que sólo llegará el tiempo de Hölderlin cuando «todo el mundo» entienda su poema. Nunca llegará por esa vía, porque es la propia penuria la que le presta a la edad del mundo fuerzas con las que, ignorante de su hacer, impide que la poesía de Hölderlin se adecue a los tiempos."

De maneira similar concluo este artigo ousando afirmar que "Heidegger é o precursor dos filósofos em tempos de penúria. Por isso nenhum filósofo desta época pode superá-lo............"

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O mundo estava no rosto da amada
Rainer Maria Rilke

O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.
Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?
Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.
(Tradução: Augusto de Campos)
http://www.culturapara.art.br/opoema/rainermariarilke/rainermariarilke.htm



















Referências bibliográficas
HEIDEGGER, M. ¿Y para qué poetas? [Wozu Dichter?] (Disponível em: Acesso em 18 jun 2010)
HEIDEGGER, M. El problema de la trascendencia y el problema de Ser y Tiempo. (Disponível em: Acesso em 18 jun 2010)
KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gunbenkian, 2001
LEIBNIZ, G.W. A Monadologia e outros textos. São Paulo: Hedra, 2009
HEIDEGGER, M. Tiempo y Ser [Zeit und Sein] (Disponível em: Acesso em 19 jun 2010)
HEIDEGGER, M. El arte y el espacio [Die Kunst und der Raum] (Disponível em Acesso em 19 jun 2010)
HEIDEGGER, M. El concepto de tiempo. (Disponível em Acesso em 19 jun 2010)

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O Caixão de Esmola.

Capítulo 1
O Gambito do Caixão.
(Esta é uma obra de ficção e qualquer coincidência com nomes ou fatos é mera casualidade.)

Gesualdo estava chegando ao seu ponto preferido, ao lado do Banco do Brasil, e ainda estava ajeitando seus apetrechos de mendigo esmoleiro, e começava a se sentar para começar mais um dia de trabalho quando avistou uma senhora bem aparentada, com cara de bondosa e pensou para consigo mesmo:
- Essa tem cara que vai render uma boa grana; - e logo cantarolou choroso:
- Uma esmola pelo amor de Deus.....
- Você quer esmola pra quê? - replicou a senhora com cara de bondosa.
Esmola pra quê?? Esses contribuintes estão cada vez mais inoportunos, isso é pergunta que se faça a uma hora dessas, pensou Gesualdo.

- Eu quero esmola para....para.....
Faltava-lhe a palavra adequada, aquela pergunta feito logo cedo, 11 da manhã, o cérebro de Gesualdo ainda não estava devidamente ajustado às respostas padrão que seu ofício exigia, ele ainda estava sonolento, e o raciocínio estava lento.
- Sim esmola pra que meu bom homem? Insistia a senhora.
- Eu quero uma esmolinha pelo amor de Deus para...para... para...
Comprar cachaça! Não, não, isso não, Gesualdo pensava desesperado:
"Meu Deus o que eu digo" - o cérebro começava a funcionar com a lentidão de uma lesma bêbada e a senhora ali, olhando insistentemente, ela poderia ir embora a qualquer instante se ele não respondesse rapidamente, esmola é uma coisa de impulso, todo bom marketeiro e mendigo sabe disso, pra quê afinal de contas ele queria aquela esmola... e então não se sabe de que região de sua mente saiu a resposta.
- Eu quero a esmola pra comprar um caixão!

- Um Caixão?? Novamente pergunta a senhora espantadíssima.
- Um caixão?!
Pergunta e responde mais espantado ainda Gesualdo.
De onde raios ele havia tirado este caixão, esmola pra comprar um caixão, definitivamente ele concluía que este tal de álcool faz mal, isso é desculpa que se apresente? Esmola pra comprar um caixão??

- Meu bom homem você quer esmola pra comprar um caixão? Novamente a senhora com cara de bondosa torna a perguntar.
Gesualdo petrificado, mudo, com os olhos vidrados, travava uma luta brutal no seu interior para conseguir colocar sua mente para trabalhar, tentava desengripar as engrenagens do seu cérebro ainda entorpecido pelo álcool da noite anterior. Estava ele mais desnorteado que a senhora com esta estória de comprar um caixão. E assim permanecia mudo.

- Você quer comprar um caixão pra você?
Mais uma vez a senhora perguntava ,mais que coisa, será que esta mulher só sabe perguntar, cogitava Gesualdo já irritado com tantas perguntas e nada de esmola, nisso a irritação pelas perguntas e pelo absurdo do motivo que ele elegeu, fez com que despertasse mentalmente e voltasse já a sagacidade necessária à sua faina.

- Eu quero sim comprar um caixão, o caixão não é para mim, é para um amigo, coitado morreu antes de ontem e ainda não foi enterrado por falta do caixão.
- Mas o serviço social da prefeitura providencia o enterro.
Finalmente a mulher fez uma afirmação ao invés de uma pergunta, de qualquer forma foi uma afirmação que em nada contribuía para conseguir a tão desejada esmola.

- Sim, retrucou Gesualdo, o serviço social providencia realmente o enterro, mas a senhora sabe a prefeitura está sem dinheiro, estive lá e me disseram que não dispõem de verbas para comprar caixões e estão sem nenhum no momento, talvez no semestre que vem se a lei de dotação orçamentária for aprovada, eles disseram.
- Mas é um absurdo, um pobre coitado morre e estes malditos políticos com suas burocracias.
- Pois é.....estou sofrendo muito... era muito meu amigo... o..., o... , o morto, coitado..
- É, a gente tem que fazer a nossa parte, eu vou te ajudar. Disse decididamente a senhora.
Gesualdo vibrava, finalmente, conseguiu se desvencilhar daquela estória esdrúxula e ainda ganharia a esmola.
A senhora abriu a bolsa, Gesualdo já mecanicamente estendia a mão à espera da esmola, quando a senhora sacou de um cartão de visitas e disse:
- Vem comigo, vamos até ali, a senhora com cara de bondosa conferiu o endereço no cartão e prosseguiu, vamos naquela funerária, logo ali na próxima esquina.
- Funerária? Pra quê? Pergunta estarrecido Gesualdo.
- Como pra quê? Pra comprar o caixão.
- Caixão?? Que Caixão? Nisso Gesualdo se dá conta que tinha pegado a mania da mulher de fazer perguntas, e pior, estava fazendo perguntas inadequadas e comprometedoras.
- Ora meu bom homem, eu vou comprar o caixão para seu amigo morto.
- O Caixão? Para o meu amigo morto? Sim o caixão, sim, sim o meu amigo morreu, está morto, não vive mais, está mortinho coitado, precisa do caixão.
A mulher olhava para Gesualdo compadecida dele, aquele pobre homem estava visivelmente perturbado com a morte de seu amigo e necessitava decididamente da ajuda dela e então carinhosamente, mas de maneira imperiosa disse:
- Acompanhe-me, vamos até a funerária.
- Mas a senhora não precisa comprar o caixão não, basta me dar uns trocadinhos...
- Não senhor, faço questão de oferecer o caixão.
- Não, não precisa de tudo isso, que Deus a ajude, à senhora e toda a sua família, só uns trocados, umas moedinhas já me ajudam bastante...
- Vamos me acompanhe, já disse, vou comprar o caixão para seu amigo e ponto final. Além disso, conheço o dono da funerária e ele, com certeza, vai me dar um desconto na compra do caixão.

E assim Gesualdo acompanhou a mulher com cara de bondosa até a funerária, e não conseguia encontrar nenhum argumento para convencê-la a lhe dar uns trocados e esquecer a idéia estapafúrdia de comprar o caixão.
- E desta maneira aconteceu que Gesualdo escolheu um belo caixão para seu inexistente amigo morto, a mulher pagou o caixão e disse:
- Bem e agora onde está seu amigo?
- Que amigo? Pergunta Gesualdo distraído enquanto observa o belo caixão.
- O amigo morto!
- Que morto? Responde enquanto passa os dedos sobre as flores em alto relevo entalhadas na tampa do caixão.
A mulher com cara de bondosa pensa consigo mesma: isto é que é amizade de verdade, o pobre coitado não consegue aceitar que seu amigo morreu, está a apreciar o caixão. Nisso Gesualdo como que despertando de sua letargia mental responde atabalhoadamente à pergunta

- Sim meu amigo o morto, sim ele coitado morreu, a senhora sabe, o morto, ele... ele está lá morto.....
- Sim mas está lá morto onde?
- No nosso acampamento na saída da cidade, indo pra Tupaciguara...
- Então vamos levar o caixão até lá estou com minha caminhonete, vamos lá.

Gesualdo nem ousou discutir, pois a mulher falava como se tudo já fosse fato consumado, além disso, já tinha tentado dissuadi-la antes e não teve êxito, pensou que o melhor seria aproveitar o tempo de viagem e pensar em alguma coisa. Colocado o caixão na carroceria da caminhonete, lá se foram, o trânsito estava tranqüilo, seguiram pela avenida Rondon Pacheco, e em poucos minutos deixavam já a cidade de Uberlândia em direção à Tupaciguara, Gesualdo pensava, pensava e pensava, então nisso anuncia:

Está bom, a senhora pode me deixar aqui.
- Mas aqui no meio da estrada? Cadê o acampamento?
- Lá... e apontou mostrando uns pedaços de lona a alguns quilômetros retirados da estrada.
- Ora mas então eu te levo até lá....
- Não, não senhora, eu agradeço, mas acontece é que meu amigo foi morto num acidente de automóvel e foi justamente uma caminhonete que o matou, daí não gostaria que a família do morto visse uma caminhonete chegando com um caixão.
- Humm, tem razão, tem razão é por demais triste, pois bem vá com Deus.
- Muito agradecido bondosa senhora vá com Deus.

Gesualdo desceu o caixão, a senhora com cara de bondosa vez meia volta e foi-se embora.
Sob os céus de Minas Gerais, na estrada Uberlândia - Tupaciguara, se viu então uma cena insólita, um mendigo maltrapilho, com ataduras com tingimento vermelho nas pernas, caminhava cambaleante estrada afora com um caixão de luxo nas costas...

Gesualdo sai da estrada e entra então no caminho de terra que leva ao acampamento, de cansaço já não carrega, mas arrasta o caixão que levanta atrás de si uma leve poeira vermelha fina, típica do mês de agosto.
O burburinho do acampamento de repente cessa, quando Gesualdo e seu caixão aparecem.
Espanto geral. Era comum os outros mendigos do acampamento aparecerem com coisas incomuns para eles e suas necessidades, coisas como banheiras, pneus, sofás, fogões, eram incomuns, mas ainda assim encaixavam-se dentro da categoria dos incomuns comuns e normais, agora, um caixão realmente era incomum e a primeira vez que tinham notícia de um mendigo que tinha ganhado esmola tão exótica.

- O que que é isso? Pergunta Brutonaldo, assim apelidado por ser o irmão mais forte, bronco e bruto de Gesualdo.
- Um caixão não está vendo? Responde irritado Gesualdo.
- Quer levar um murrão nas fuças? Tô vendo que é um caixão, prá que isso? Retruca com a polidez de sempre Brutonaldo.
- Você vai morrer Gesualdo? Indaga Zé Pamonha.
- Não, não vou morrer...
- Como não, todo mundo morre um dia. Interrompe João Isqueiro.
A única certeza que temos nessa vida é que vamos morrer, diz completando o ditado.

- Como você sabe que todo mundo morre um dia? Heim? Questiona veementemente Justim.
- Mas é claro que todo mundo morre, se nasceu tem que morrer! Aparta Brutonaldo.
- Mas não se segue que de determinada ação surja determinada conseqüência, não podemos afirmar "a priori" que tudo que nasce morre, esta afirmação é baseada unicamente na experiência e não em uma conclusão lógica, essa conclusão é em suma baseada somente na crença, vemos repetidas vezes que pessoas que nascem morrem e daí por pura crença deduzimos que tudo que nasce morre. Da mesma forma que após a noite vem o dia, e assim se repete por anos e anos, deduzimos que após esta noite amanhã virá o sol, mas isto é pura crença, pois não há nenhuma certeza que haverá um amanhã ou uma manhã, pois esta noite um cometa pode arrasar o planeta e não haver o dia seguinte, por exemplo.
Isto já dizia David Hume no seu Tratado Acerca do entendimento Humano, tratado o qual levou Emanuel Kant a escrever a Crítica da Razão Pura e a a despertar do seu sono dogmático conforme....
- Poooff.
Foi o som seco que se ouviu quando Brutonaldo acertou um soco direto no queixo de Justim que caiu desacordado. A eloqüência e os estranhos argumentos de Justim são explicados pelo fato que seu ponto de mendigar é na UFU, Universidade Federal de Uberlândia, na faculdade de Filosofia e assim entre uma esmola e outra acaba por assistir um pouco às aulas ou as conversas dos aspirantes a filósofo.

- É o seguinte Gesualdo, fala por que deste caixão e não enrola; Adverte Brutonaldo.
- Eu ganhei o caixão de esmola.
- Mas deixa de ser burro Gesualdo como que você pede um caixão.
- Você vai morrer Gesualdo? Insiste desconfiado Zé Pamonha.
- Pelo amor de Deus eu não vou morrer.
- Há..., mas todo mundo morre um dia, sentencia João Isqueiro.
- Vai morrer é um murrão na boca de quem não deixar Gesualdo terminar de falar; Media Brutonaldo.
- Tudo bem, vou contar a história desde o começo; Gesualdo narra então todo o acontecido e ao final o veredicto é unânime:
- Gesualdo, mas você é um burrão mesmo.
- E agora, o que a gente vai fazer com este caixão? Diz esfregando as mãos Zé Pamonha.
- Vamos fazer um gambito - Retruca Lucanor.
- Gambito? o que é isso pergunta Arnaldo, o irmão mais apalermado ainda de Gesualdo.
- Lucanor estufa o peito e ensina: Gambito é quando fazemos uma troca onde aparentemente parecemos sair perdendo, mas na verdade o que acontece é que fazemos um pequeno sacrifício para poder sair ganhando num futuro próximo.
Tal teor de argumento num mendigo como Lucanor se explica pelo fato que seu ponto de mendicância se situa junto ao Clube de Xadrez, lá na praça Sérgio Pacheco, donde vez ou outra até joga algumas partidas do antigo jogo de Caissa.
- Trocando em miúdos, vamos fazer uma catira deste caixão, a gente troca ele por alguma coisa mesmo que for por um preço baixo, é mais negócio que ficar com o capital empatado numa mercadoria sem giro nenhum. Definiu assim Pedro Marx que tinha seu ponto na faculdade de Economia o destino que dariam ao caixão.

E lá se foram estrada afora, rumo à gloriosa cidade de Uberlândia, uma comitiva de mendigos, dentro os quais, seis deles carregavam um luxuoso caixão sob o inclemente sol de agosto.

Os motoristas que passavam certamente contestariam o Eclesiastes com sua máxima que "não existe nada de novo sob o sol", nada de novo só se for lá pelo sol da Palestina, aqui pelo menos era a primeira vez que se via uma legião de mendigos totalmente trajados pra efetuar seu ofício, carregando um caixão de alto luxo, cheio de muletas, cuias, tingimentos vermelhos, faixas e esparadrapos, cobertores e andrajos diversos, isto porque tiveram os mendigos a idéia de colocar seu material de trabalho dentro do caixão já que todos iriam se revezar no carregamento.

Acontece que por aqueles dias havia na cidade alguns jornalistas italianos que tinham vindo para cobrir a instalação do pólo moveleiro da cidade, que seria constituído por algumas indústrias italianas, daí aconteceu que tais jornalistas viram o esdrúxulo episódio dos mendigos e embora este não fosse o objeto de suas reportagens narraram os fatos que foram publicados em um pequeno jornal em Milão, ao mesmo tempo alguns jornalistas locais também noticiaram os fatos na imprensa da cidade e da região.

Aí então as coisas começaram a seguir um rumo inusitado, entram em cena os jornalecos sensacionalistas britânicos, que estavam, depois da morte de Lady Diana, um pouco sem assuntos bombásticos, e além do mais o governo inglês na figura do primeiro ministro Tony Blair estava com o prestígio em baixa, depois que apoiou os mandatários norte americanos a exterminar com milhares de bombardeios aéreos um minúsculo, pobre e faminto país chamado Afeganistão, e depois contra a vontade da maioria da população britânica, os governantes apoiaram novamente os seus colegas governantes norte americanos a invadir e destruir outro país, deste vez o Iraque, com isso toda atenção da população estava voltada para notícias sobre os massacres e as invasões, e a vendagem dos folhetins havia caído, desta forma era necessário arrumar uma notícia para reverter a situação, assim para ajudar primeiramente quem,não se sabe, se para aumentar a popularidade do primeiro ministro e desviar a atenção do povo, ou para aumentar a vendagem dos jornalecos ou ambos, surge a manchete:

BRASIL NÃO ENTERRA SEUS MORTOS.


O que aconteceu, foi que os jornalecos britânicos, buscando fatos para distorcer e fabricar notícias, encontraram com a pequena nota do jornal da cidade de Milão sobre uns pobres coitados andando a pé estrada a fora carregando um morto que não puderam enterrar, dizia o jornal.
Daí para a manchete que o Brasil não enterra os seus mortos foi um milésimo de segundo, se isto era verdade ou não, não interessa, já que “Verdade” é uma questão filosófica e não jornalística.

Pois bem, depois desta manchete, as coisas começaram a ferver na Europa e Estados Unidos, a notícia que em princípio, havia circulado apenas em pequenos jornais, começou a ganhar proporções maiores e chegou aos grandes jornais, ingleses e italianos, países que apoiavam as invasões e os saques dos norte-americanos, contra a vontade da maioria esmagadora da sua população e por isso seria bom para seus governantes que houvesse um assunto que desviasse a atenção do povo chatinho que não sabia ficar calado, quieto, cuidado de sua vidinha. Não se sabe como, talvez devido à repercussão gigante que se deu ao assunto, foi destacado um representante da comissão de direitos humanos da ONU, para investigar o caso, ainda mais porque a ONU, não estava servindo para nada mesmo, já que havia proibido a invasão do Iraque e mesmo assim os norte americanos, que não estão nem aí, foram lá e arrebentaram com tudo, e ainda mais a comissão de direitos humanos, que estavam totalmente mudos, com o fato de milhares de afegãos capturados em seu país e levados a milhares de quilômetros de sua terra natal, para a base norte americana de Guantânamo, onde são sistematicamente e abertamente torturados e estes mesmos comissários da ONU faziam e fazem questão de ignorar o assunto.
Sem falar nos constantes massacres de civis iraquianos que tanto a Onu, quanto todas as demais ONGs de direitos humanos, médicos sem fronteiras, jornalistas sem fronteiras etc, parecem desconhecer o assunto.

Assim em decorrência da invasão norte americana ao Afeganistão e ao Iraque estas organizações ficaram mudas e caladinhas e devido à pressão da opinião pública precisam mostrar serviço pra sobreviver, da mesma forma que os jornalecos britânicos precisam fabricar um fato. Por isso é que veio todo mundo ao Brasil, tudo quanto há de Ongs de direitos humanos, disso e daquilo, ONU, o escambaú, os hotéis de Uberlândia ficaram abarrotados de gente preocupada com os pobres e desvalidos.

Inconscientes do que estava acontecendo os mendigos, através de Gesualdo tentavam vender o caixão, ou fazer um gambito com diria Lucanor, o que fosse possível. Brutonaldo propôs a um dono de bar o caixão por 200 garrafas de cachaça, embora fosse um negócio vantajoso para o comerciante este considerou que seria uma coisa de mau agouro, era como chamar a morte para si, e nada de efetuar a troca. E por este mesmo pensamento, que seria mau agouro, muitos outros negócios não foram concluídos. Já estavam a mais de três dias perambulando pela cidade com o caixão tentando negocia-lo, quando foram redescobertos e abordados por jornalistas internacionais, nacionais, representantes da comissão de direitos humanos da ONU, Ongs das mais diversas facções e lugares. Enfim, era uma horda imensa de gente querendo ganhar e fazer dinheiro com a desgraça alheia.

Abruptamente cercados pela legião das beneméritas criaturas, Gesualdo e Brutonaldo ficaram completamente aturdidos, chovia perguntas, luzes, relampejar de máquinas fotográficas, filmadoras, milhares de gravadores, telefones celulares, os mendigos estavam como numa ilha cercados por todos os lados.
Gesualdo que estava com o cérebro totalmente ativo, sorria e respondia a todos, começava uma resposta interrompia e começava a responder a outras, embora não soubesse o que estava acontecendo, não se fez de desentendido e falava com a desenvoltura de Napoleão discursando para suas tropas.
Nesse ínterim Brutonaldo que era bronco, mas não era bobo, estendia a mão e choroso dizia: uma esmolinha pelo amor de Deus, e como as câmeras das emissoras locais de Televisão estavam ligadas, os estrangeiros tanto os comissários da ONU, quanto das ONGs se apressaram em oferecer as esmolas, alguns diziam a Brutonaldo - " I don't understand you" “i no speak spanish” e continuavam as perguntas a Gesualdo, curiosamente em português.


O certo é que Brutonaldo bateu o maior de todos os índices de esmolas da história da mendicância mundial, em poucos minutos enquanto duraram as filmagens das redes de televisão, caiu mais dinheiro no chapéu do esmoleiro do que bombas inglesas e norte americanas nos museus e hospitais de Bagdá, talvez não tanto, com certeza muito menos, mas mesmos assim foi dinheiro absurdo, estava estabelecido uma nova marca mundial. Brutonaldo contou o dinheiro e estava lá: Três mil, 748 reais e vinte e oito centavos, em pouco menos de 4 minutos.

E da mesma forma que apareceram, os jornalistas e pessoas caridosas preocupadas com os pobres e desvalidos foram embora, pois afinal de contas precisavam fazer seus relatórios, notícias, era preciso fazer dinheiro (ou informar a opinião pública) e saíram pra isso.

Gesualdo e Brutonaldo continuaram na mesma situação que estavam antes, com o caixão e sem saber o que havia acontecido direito. Ficaram as esmolas de Brutonaldo e muitas promessas de um enterro decente para o morto e muitos agendamentos de encontros para o dia seguinte, os quais Gesualdo fez questão de marcar para acontecer no seu acampamento.

Aproveitando que a multidão havia ido embora Gesualdo se achegou perto de uma estudante de jornalismo que ainda fazia anotações e perguntou como ela iria contar a história. Então a jovem contou toda a versão que corria o mundo sobre o Brasil não enterrar seus mortos, a visão que ela teve agora depois das respostas de Gesualdo e como achava que as autoridades brasileiras e internacionais tinham de tratar do caso.

Gesualdo que não tinha a mínima idéia do que estava acontecendo finalmente conseguiu formar um quadro completo da situação, ainda meio obscuro, mas já tinha agora uma visão global da mirabolante comédia que vivia.
Dirigiu-se para o acampamento e expôs a situação para todos os outros mendigos.
(continua...)